02/05/2012

DIA DA MÃE


No próximo domingo é DIA DA MÃE, pelo que começamos a publicar alguns textos, como este de Manuel Alegre. Queres enviar a tua escolha?





Rosas vermelhas


     Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.

    E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
     Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
     E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do irremediável. (…)
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono. Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então exclamava:
- Mãe!    (…)
     Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?   (…)
     Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto. No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
     Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.

Manuel Alegre, Praça da canção



3 comentários:

  1. Tenho a obra de Maria Teresa Horta «A Mãe na literatura portuguesa» e sempre que (re)leio esse texto emociono-me. É extraordinário!

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    Respostas
    1. A equipa da BE02 maio, 2012 15:55

      Podemos compartilhar esse texto?

      Eliminar
  2. Claro que sim. Também gosto muito deste:
    Pequeno poema

    Quando eu nasci,
    ficou tudo como estava.

    Nem homens cortaram veias,
    nem o Sol escureceu,
    nem houve Estrelas a mais...
    Somente,
    esquecida das dores,
    a minha Mãe sorriu e agradeceu.

    Quando eu nasci,
    não houve nada de novo
    senão eu.

    As nuvens não se espantaram,
    não enlouqueceu ninguém...

    Pra que o dia fosse enorme,
    bastava
    toda a ternura que olhava
    nos olhos de minha Mãe...

    SEBASTIÃO DA GAMA
    In Serra-Mãe

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