Infinite gratitude, René Magritte, 1963 |
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios...
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-se em fumo...
tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além vêem?
Nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira
Nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira
Por mim, nos dias 1 e 2 de Novembro - os dias em que as nossas sociedades científico-técnicas, que fizeram da morte tabu, permitem a visita dos mortos -, coloco um CD com o Requiem Alemão de Brahms e outro com o Requiem de Mozart no leitor de CD, em homenagem aos meus pais, amigos e todos os mortos - poderão ser uns cem mil milhões. A música diz-nos o indizível: o que é existir simultaneamente no tempo e fora dele.
Padre Anselmo Borges
in DN
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