01/11/2016

A MORTE E DEPOIS

 Infinite gratitude, René Magritte, 1963

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.

"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios...
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-se em fumo...
tão leve... tão subtil... tão pólen... 
como aquela nuvem além vêem?

Nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira


Por mim, nos dias 1 e 2 de Novembro - os dias em que as nossas sociedades científico-técnicas, que fizeram da morte tabu, permitem a visita dos mortos -, coloco um CD com o Requiem Alemão de Brahms e outro com o Requiem de Mozart no leitor de CD, em homenagem aos meus pais, amigos e todos os mortos - poderão ser uns cem mil milhões. A música diz-nos o indizível: o que é existir simultaneamente no tempo e fora dele. 
Padre Anselmo Borges
in DN


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