No dia da sua trasladação para o Panteão Nacional, o testemunho dos filhos:
Às vezes, quando a casa estava adormecida, à noite, ela
dançava pela sala fora, tal como escreveu («bailarina fui mas nunca bailei») (…)
Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas
sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram todos uns personagens
extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas
surpreendentes. (…)
A segunda coisa sobre poesia que aprendemos
é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é oral, não cabe nos
livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou mineralogia mas,
aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de Shakespeare
em inglês do século XVI, ou o “Erl König”, do Goethe, em alemão. E quando ela
trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela
Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o
imenso “Llanto por Ignácio Sanchez Mejia”. À mesa, entre a sopa e o prato
principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa das sete da
tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma
naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em
latim ao “orate, frates!” do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças
têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão
abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de
Natal, ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída,
perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro
à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio. Um dia, no eléctrico a
caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que rezava
assim: “se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche.” E então, no
meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fingem não ver e não se
ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando um poema:
“se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca mais a
abra.”
A mim, todavia, ensinou-me o mais importante
de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas,
ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a
abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consistência das
rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar
longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num
café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante,
ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler
com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi a da liberdade.
Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, “num sítio
tão imperfeito como o mundo”, mas ainda a liberdade na busca de um caminho
próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a
liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe
de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e
tempo, manhãs como a “manhã da praça de Lagos” e noites com “jardins invadidos
de luar”. E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha
infância.
Miguel Sousa Tavares, Não te deixarei morrer, David Crockett
Há uma glória neste lugar solar
por sobre a sombra, o desabrigo,
ladeando ventos, passos, vozes,
pássaros de água.
Há sob o sol antigo (sol alheio, de sobranceria)
um acolhimento, como se ele apenas contigo
houvesse agora entendimento e no princípio
da praia, solitário, te esperasse.
Para trás ficou a cidade - a cidade-estuário,
a cidade azul criada pelo rio, a cidade olhada,
percorrida, no bater do coração de tanto Verão -
amarga e amada e na tarde da terra o trabalho
avança, contigo para o sem-nome da distância,
solitária e azul.
Maria Andresen
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