19/03/2016

PAI



   Pai, estou em frente ao espelho.
  Relembro-te um momento em que estavas de cócoras ao meu lado e me ajudavas a montar um lego, tendo de te agradecer isso, de te debruçares sobre as minhas brincadeiras, cresci com a tua sombra. Tenho de agradecer-te o hálito a cefé pela manhã, quando me acordavas para ir para a escola, e, claro, o primeiro after-shave que me deste, depois de rapar o buço incipiente que me pautava o lábio superior. Pai, ainda uso a mesma marca, não consigo imaginar outra, se a fábrica deixar de os produzir desisto de fazer a barba. Tenho de te agradecer o primeiro jogo do Sporting que vi no estádio de Alvalade, o Manuel Fernandes, o Oliveira, o Damas, mas acima de tudo o facto de gritares golo como se reclamasses a eternidade, nunca esquecerei da tua voz a fazê-lo, era a única que ouvia no delírio, era o grito que eu seguiria como se fosse o Messias, eu, com sete anos a correr atrás da revelação, da religião, da vida eterna que era uma palavra de quatro letras, como o impronunciável nome de Deus era para os judeus. (...) 
  Tenho de agradecer-te, pai, o modo como sorrias quando eu chegava a casa e te abraçava, confuso pela tua presença breve, delicada, como uma brisa. Se um dia vier a acreditar em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto. O mundo, quer-me parecer, é muito mais um sorriso ou uma flor a abanar ao vento ou um grand canyon. (...)
  Mas encontrar-nos-emos aqui no espelho, ou num golo do Sporting, em quatro letras.
  Até já.

  Excerto de Flores, de Afonso Cruz, que a BE empresta. 

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