14/03/2017

GATOS E ESCRITORES III

Gato

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

Alexandre O'Neill

Alexandre O´Neill, o gato e o adeus

O GATO, vendo o poeta de ombro apoiado na ombreira a observar a feira cabisbaixa em seu redor, acercou-se dele e perguntou-lhe, no murmúrio ronronado que costuma servir de preâmbulo às grandes questões metafísicas:
- Servos ou donos?
O poeta, por achar a pergunta demasiado enigmática, contornou a resposta afagando-lhe o dorso e dizendo:
- Deves estar cheio de fome, o teu mal é fome, e eu não tenho forma de remediar esse problema, porque não sou rato, nem peixe, nem pássaro estonteado pela luz. Eu sou apenas um pobre poeta de ombro na ombreira.
Mas o gato, apurando o gutural e afectuoso ronrom, insistiu:
- Sei bem ao que venho, sim, porque eu nunca me esqueço dos versos que me são dedicados. Eu bem me lembro das tuas palavras, Alexandre: Que fazes por aqui, ó gato? / Que ambiguidade vens explorar? Quem sou eu, meu caro Alexandre, para te deixar sem resposta, logo a ti, meu poeta de Lisboa, de coração amarfanhado pela tenaz da mais irónica ternura?
Foi então que Alexandre se lembrou do gato do poema, dessa coisa ágil e esquiva, soberana e livre, em forma de assim, fugaz como um golpe de vento, rebelde como uma metáfora imprevista. 
- Tantas vezes te deixei utilizar esta mão — disse — que cheguei a acreditar que, quando escrevesse um poema sobre ti, serias tu mesmo a escrevê-lo, de forma mediúnica, usando o movimento pausado da minha mão sobre o papel.
O gato, esse mesmo, o do poema, roçou a cabeça pelas pernas do poeta, impregnando-se com o seu cheiro, com o perfume das suas palavras exactas e limpas, e depois aventurou-se num breve monologo de bicho filosofante. Assim:
- É como te digo, Alexandre, tu e eu temos em comum este vício felino de sermos livres, nas palavras, nos gestos, nos silêncios. Um dia, tu partes e eu fico para aqui abandonado a miar à lua, como se perguntasse por ti. Um dia, eu parto e tu ficas sem gato a quem possas dedicar o poema, órfão de gato, nostálgico da sua arqueada liberdade arrastada sobre os telhados como uma confissão de nocturnos cios.
O poeta, emocionado com a enleante sabedoria do gato, esse mesmo, o do poema, só conseguiu perguntar-lhe:
- Afinal, vamos lá a saber, o poeta és tu ou sou eu?
Ao que o gato respondeu:
- Somos os dois, Alexandre, somos os dois, cada um à sua maneira. Tu no que escreves e eu no que não escrevo mas vivo. Temos este destino comum a ligar-nos como uma ponte, como uma centelha de luz, como um arame a juntar as duas extremidades da lua nova.
Alexandre, o poeta, só encontrou uma forma de lhe responder:
- Há miar e miar, há ir e voltar.
Ainda a frase não se deixara concluir e já o gato se empoleirara sobre o parapeito de uma janela, muito perto da ombreira da porta, posto de observação do poeta para ver a feira a ficar cada vez mais cabisbaixa, por falta de esperança para erguer de vez a cabeça em direcção ao sol.
Do gato nunca mais o poeta teve noticias, nem em prosa nem em verso, e quando, num sisudo dia 21 de Abril, o coração do poeta, como um gato triste e cansado, se recusou a levar por diante a faina de estar vivo, houve quem avistasse um velho gatarrão sobre o parapeito da janela do hospital, murmurando com a sapiência do seu estilo ronronado:
- Há miar e miar, e tu, Alexandre, hás-de voltar, porque um gato sem o seu poeta de estimação fica prometido à morte como um pardal à inclemência do relâmpago.
E quando alguém, aproximando-se dele, quis saber "o que fazes por aqui, ó gato?", o bichano, arqueando-se para o derradeiro salto na direcção da lua, respondeu apenas:
- Perguntem ao Alexandre, ao O'Neill, que só ele sabe. Os poetas é que sabem. É dos livros.
Conto de José Jorge Letria, em Amados Gatos

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